Realizada desde o dia 15 de agosto no Santander Cultural, em Porto Alegre, a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” foi suspensa no domingo, após protestos realizados nas redes sociais.

Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a mostra reunia quase 300 obras (algumas ilustram esta página) que tratam de questões de gênero e diversidade em diversos formatos. As peças eram assinadas por 85 artistas como Portinari, Di Cavalcanti, Lygia Clark e Adriana Varejão, e a exposição foi viabilizada por R$ 800 mil captados pela Lei Rouanet.

Os protestos, engrossados por grupos conservadores como o Movimento Brasil Livre (MBL), saíram da internet e chegaram a algumas agências do banco, que foram pichadas. O argumento é de que a exposição utilizava dinheiro público para cometer blasfêmia e, em alguns casos, incitar a pedofilia e zoofilia.

Por meio de nota, o Santander afirmou que “além de despertar a polêmica saudável e o debate sobre grandes questões do mundo atual, a mostra foi considerada ofensiva por algumas pessoas e grupos, o que não faz parte da visão de mundo da instituição”.

Em entrevista ao jornal “O Globo”, o curador Gaudêncio Fidelis disse não ter sido procurado pelo banco. “Fiquei sabendo pelo Facebook”, alegou.

Ideologia

Por aqui, artistas, estudiosos e galeristas concordam entre si. Gaúcho radicado em Vitória, o artista plástico e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Rafael Pagatini encarou a suspensão com estranheza e revolta. Também mestre em poéticas visuais, ele diz haver uma questão ideológica fortíssima por trás dos protestos e da atitude do banco.

“A própria instituição se propunha a fazer uma discussão, a pensar na multiculturalidade do Brasil. Mas com esta ação arbitrária fica claro que as pessoas não querem se abrir ao outro, não têm sensibilidade de encontrar questionamentos na arte”, ressalta.

O pesquisador diz que o silenciamento é uma forma de censura e impossibilita a expressão da arte de forma ampla. “Isso cria uma situação extremamente complicada. É uma forma de desautorizar a própria arte, a própria expressão. Como tenho pesquisa voltada para a ditadura, logo associo esse tipo de discurso conservador”, frisa Pagatini.

Uma das diretoras da Galeria Matias Brotas, Lara Brotas considerou razoável a nota da instituição, mas fez questão de frisar que a arte contemporânea serve, também, para colocar em xeque as questões do século em que vivemos.

“O que foi colocado na exposição é uma questão mais do que atual. Para muitos parece assustador, mas são questões que estão aí para nós discutirmos”, diz, a respeito da temática da exposição.

Lara acredita que talvez tenha acontecido uma falha no diálogo entre o curador e a instituição. Para a galerista, talvez o Santander Cultural não fosse o local mais adequado para receber a mostra.

“Assim, gerou uma crise de qualquer forma. Talvez se o banco tivesse mantido não teria essa repercussão toda”, opina.

“Qual o problema no que incomoda?”

Talvez eu tenha mais perguntas que respostas. As obras foram escolhidas por terem uma relação com o queer. O termo, novo para muitos, é discutido desde a década de 1980 e podemos dizer, de um jeito rápido, que ele trata da relação entre o sexo biológico e a identidade sexual do sujeito. Ou seja, sim, a sexualidade era tratada na exposição. Mas em 1504, Hyeronimus Bosch pintou um quadro com três painéis, um tríptico, chamado “O jardim das delícias terrenas”, que está em um dos museus mais importantes da Espanha.

Sugiro que dê um passeio pelo quadro. O que nos revolta agora? “Eu vi o mundo e ele começava no Recife”, obra de Cícero Dias, foi rasgada pelos visitantes em 1931 em uma exposição organizada por Lúcio Costa no Rio de Janeiro. O painel mostrava cenas eróticas de carnaval. Os símbolos da igreja católica começaram a ser criticados pela arte desde o Renascimento.

Onde está a novidade? E talvez a pergunta mais importante seja: qual o problema em algo que incomoda? O incômodo vem do estranho, do que não estou habituado a ver, ou da intolerância? A arte tem a capacidade de provocar conversas, de nos tirar no conforto, de nos fazer pensar. O pior da exposição talvez tenha sido fechá-la sem transformar aquele choque em oportunidade de diálogo.

Rízzia Rocha. Doutora em Filosofia pela UFMG, pesquisadora na área de Estética e Filosofia da Arte e professora da Ufes.

 

Matéria Retirada na Íntegra do Portal Gazeta On Line.