Seu Fuke morreu há cerca de dois anos na altura dos 87 anos bem vividos. Ritmista de mão cheia foi fundador da gloriosa Acadêmicos de São Vicente, escola de samba que viu sobressair na passarela, era pedreiro e ajudou a marcar para sempre a saga da navegação do Rio Doce.

“Morreu cantando”, recorda o filho Denival Cavalcante ao narrar os momentos finais de José Cavalcante Batista, o Fuke o último integrante da tripulação do navio a vapor Juparanã que singrou o Rio Doce de 1927 até o final da década de 40.

Aos 13 anos, Fuke um menino de calças curtas, de sandálias que vivia a engraxar sapatos nas ruas de Colatina até deixar a escola para embarcar na viagem do sonho de ser marinheiro. O mais jovem dos marujos do ‘vaporzinho’ engajou na tripulação na função de ajudante de cozinha, mas disposto a seguir carreira, se tornar um navegador e ganhar os sete mares.

Durante um ano e oito meses, além de descascar batatas, alho, cebola, cortar legumes e picar peixes, o menino desempenhava as tarefas de ‘moço de convés’, trabalho duro e pesado de limpeza, pois tinha a missão de deixar o assoalho brilhando tal qual exigia o bravo comandante Pedro Epichim.

Epichim um imigrante russo. Tinha cursado engenharia naval em seu país, segundo o professor Altair Malacarne e fora convidado a integrar o Serviço de Navegação do Rio Doce e construir o Juparanã.

Fuke recorda do capitão Epichim como homem severo que não permitia cachaça a bordo da nave e falava com sotaque europeu carregado, sempre atencioso com os passageiros e seus 12 tripulantes. “Sonhava ser marítimo. Não deu. Meu aprendizado com marinho foi por água abaixo assim que o vaporzinho encalhou no banco de areia e na lama. Acabou naufragado perto de onde é hoje o Batalhão de Polícia Militar. Levou com ele minhas alegrias e tristezas de garoto de uma época que não volta mais”, contou Fuke dois anos antes de falecer.

O convés e salão de refeições do Juparanã eram bastante confortáveis, lembrava a Fuke com três grandes mesas emparelhadas, bancos e na cozinha tinha bufê com geladeira. A embarcação era toda iluminada, luz gerada pelo próprio motor do vaporzinho, motivo de encanto para o garoto pobre conhecido na nascente Colatina por recolher roupas sujas e entregar na lavandeira de um chinês na Rua Santa Maria.

“Minha mãe era de origem japonesa, meu pai foi a São Paulo a serviço a trouxe para Colatina. O contato diário com o chinês e meus traços orientais resultou no apelido de Fuke até hoje”, destacou. Órfão de pai aos três anos e afastado da mãe aos seis que enlouqueceu, ele foi recolhido pelo juizado. “Fui criado pela minha tia, meus três irmãos se espalharam pelo mundo. Encorajado pelo piloto Mário Penha fui trabalhar no Juparanã por um pequeno salário e gorjetas”, revelou.

Tabela:
Quem eram os tripulantes
Comandante: Pedro Epichim
Imediato: Ilton Epichim
Timoneiro: Mário Penha
Cozinheiro: Petronilho
Foguista: José Miguel
Marinheiros: Lindolfo, Arnolfo, Baianinho, Dozel e Wilson
Copeira: Teresa
Ajudante de cozinha: Fuke

 

Escritor narra momentos finais do Juparanã

 

A visão de um navio-fantasma em ruínas encalhado no Rio Doce no fim dos anos de 1950 deixava inquieta a alma do escritor e artista plástico Filogônio Barbosa de Aguilar, recém chegado à efervescente Colatina vindo de Minas Gerais.

O naufrágio do Juparanã, a ocupação do velho casco por prostitutas, ladrões e meninos de rua como refúgio da polícia foram registrados no livro Náufragos da Esperança, história do derradeiro suspiro do vaporzinho soterrado definitivamente na década de 70 durante a construção do aterro da Avenida Beira Rio, atualmente Senador Moacyr Dalla. “São casos reais. A ficção se mistura com a realidade do navio agonizante. Colatina enterrou um símbolo da sua história”, afirmou.

 

Cozinheiro preparava pratos à base de caça, peixes e carne de porco

 

Em 1927, o vapor Juparanã iniciava suas viagens entre Colatina e Regência. A compra do navio pelo Estado foi uma solicitação de influentes fazendeiros e políticos linharenses obrigados a viajar em lombo de burro ou canoas.

Sua capacidade de transporte era de 30 toneladas e mais de 100 passageiros, o que exigia um grande esforço da cozinha. A comida a bordo era farta e abundante, um prato cheio para Fuke que parou de estudar com objetivo ajudar a tia com o salário que ganhava no barco.

“Ficava o dia todo na dispensa picando verduras e legumes, além de recolher e lavar os pratos de louça. O cozinheiro era o Petronilho. Nas paradas em fazendas e ilhas, ele comprava carne de capivaras, pacas, tatus e pássaros abatidos pelos moradores”, contou Fuke.

“Os pratos a base de caça eram opcionais, os passageiros podiam escolher no cardápio o forte era a carne de porco, boi era caro. Todos se acomodavam na sala grande do refeitório.

Fuke narra que os horários das viagens dependiam das cargas a transportar. Nos porões cabiam até mil sacas de cacau, levava também galinhas, cabritos e porcos.

«Às vezes fazia passeios e piqueniques em Itapina a Lagoa Juparnã. Tinha que tirar a chaminé ao passar por debaixo da ponte Florentino Avidos”, destacou Fuke. O vaporzinho parava em Barbados onde era carregado com telhas e tijolos. Também rebocava as canoas dos ribeirinhos e trabalhadores das barrancas do Rio Doce.

 

Vapor tinha 26 metros e veio desmontado da Alemanha

 

O professor Altair Malacarne pesquisou os áureos tempos da navegação do Rio Doce quando navios de casco de ferro cortavam então caudaloso rio- hoje sujo, poluído e assoreado – descobriu que o Juparanã foi adquirido na Alemanha pelo presidente do Estado Florentino Avidos.

“Veio desmontado e armado com perfeição em Colatina pelo russo Pedro Epichim. Ele trabalhava em João Neiva na Companhia Vale do Rio Doce. Foi convidado a operar a embarcação. O Juparanã navegou nas águas do Rio Doce até o final da década de 40 quando foi abandonado “, relatou Altair. Pelo histórico do navio, o vaporzinho tinha 26 metros de popa a proa e seis metros de largura.

 

Possuia oito camarotes de primeira classe com maçanetas de porcelana distribuídos no segundo dos três andares do navio. No primeiro ficava a casa de máquina que tocavam sua roda d’agua, no segundo o restaurante, a cozinha e acomodações de segunda classe. Fazia sua saída de Colatina para Linhares as terças-feiras às 7h. Chegava a Linhares a noitinha e pela manhã seguia para Regência. Na quinta regressa a Linhares e sexta a Colatina. A rota era feita cinco vezes por mês entre os dois municípios.

“Só atrasava quando encalhava fora das bordas de navegação e era preciso sacudi-lo no braço ”, afirmou Fuke. No Rio Doce também circulavam nesta época outros dois navios menores, o Tupy e o Tamoyo, além da lancha Dondoca.

Fuke contou que dormia na esteira no convés quando a quantidade de passageiros era grande. Depois de exercer variados serviços de sobrevivência, Fuke aposentou como pedreiro.

De acordo com Malacarne, a navegação do Rio Doce tomou impulso através do vapor Juparanã ao fazer o trajeto de Colatina a Linhares já que a ferrovia não vingou no Norte do Rio Doce. “O presidente Florentino Avidos em pessoa veio inaugurar o Juparanã”, disse.

 

 

Fonte: Nilo Tardin